Interior do Rio tem cheiro de café, bolo de milho e mistério. A casa enorme, os móveis antigos e o pé direito altíssimo lembram e confirmam a herança colonial e a presença da aristocracia rural. O grande quintal namora, com extremo louvor, a grama verde. O balanço pendurado na mangueira beija o vento sem temor. As galinhas vivem bem com os cachorros, dividem a comida e às vezes produzem cenas explícitas de carinho mútuo. Já os gatos... Esses são metidos! Não se misturam, são sempre os que se perdem para se encontrar. E no quartinho fora da casa que guarda todos os entulhos da família, tem uma parede lisinha que combina muito bem com o projetor que o papai comprou. São cinco desenhos que reprisam incessantemente durante os cinco dias de semana.
Nos finais de semana é hora de vestir a melhor roupa feita por vovó e ir com a família toda de camionete até o centro da cidade. E lá, bem em frente à praça, onde a carrocinha de pipoca e algodão doce tem a sua morada, fica a sala escura mais incrível que já visitei em toda a minha vida: o cinema! Ai o cinema... O glamour; a beleza; os galãs; as divas; as cenas de um mundo aparentemente distante a vistas grossas, mas completamente próximas de um coração apaixonadamente sonhador.
Não largo os papéis, a pranchetinha em forma de menino dorme ao lado do travesseiro. Os lápis, os gizes, as canetas, as tintas são encontrados em qualquer canto, a cada tropeção. As cores precisam de mim, eu tenho certeza disso. E aquilo que se reproduz é uma realidade do tamanho de um sonho, concretamente abstrata, aquilo que se vê porque queremos enxergar. Meu Deus, tudo que eu quero é a harmonia das formas.
Ouço a corneta estridente, que é amiga do ar, a soprar. Subo na caixinha de sapatos, que guarda a mesada que vovó me dá, e vejo: É ele. É ele!!! O circo chegou. Todas aquelas cores; as mulheres inigualáveis. Seja pela beleza estonteante das trapezistas ou o excesso de testosterona das barbadas; um globo com a terrível alcunha de morte; os animais muito maiores e mais ferozes que os daqui de casa; e a lona montada... o máximo! Eu duvido que o mais belo dos castelos seja tão majestoso quanto uma lona de circo; e a figura que mais me faz bem, que alegra a todos, que pouco importa se é baixa, alta, magra ou gorda. Aquela que pinta-se exatamente para reproduzir aquilo que escondemos, que nasceu para ser o que verdadeiramente somos. Os palhaços nunca envelhecem!
Mas como chegam, os circos partem, assim... Às vezes sem mais nem por que. Não é como a amiga chata da vovó que aparece, todos os dias, aqui em casa. O circo não cria raízes em terra alguma, a não ser na imaginação e nos sonhos daqueles que o viram passar.
A vontade de partir é iminente. Mas antes, preciso ver a mama de leite. Avisto-a de longe, com seu andar sereno, inconfundível, com sua pele preta e seus peitos fartos que serviram a minha boca nos primeiros momentos de vida. Ela me ensinou a rezar, mas não como a vovó. Era uma reza que carecia de mata, de árvore forte, de água em abundância. Uma reza falada numa língua que veio para cá através dos navios negreiros, uma reza falada e dançada! Ganhei um colar bonito. Um colar que fosse onde eu fosse eu jamais poderia tirar. Minha fortaleza, minha guia!
Tenho a certeza! A estrada é o destino...
A benção!!!
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